ChatGPT é o melhor estagiário da empresa?

ChatGPT é o melhor estagiário da empresa?

A empresa chamava-se Nuvem&Co, dessas startups que adoram colocar o "&" no nome porque transmite inovação, parceria e falta de limites. Especializada em "transformação digital" (expressão tão maleável quanto a ética em rede social), decidiu dar um passo ousado: substituir parte da equipe de conteúdo por uma IA generativa recém-integrada ao seu sistema interno.

A diretoria adorou a ideia. O argumento era simples: "A máquina escreve mais rápido, mais barato e não pede aumento.". O CEO até brincou que o ChatGPT era "o estagiário perfeito", mas mal sabia ele o quão literal essa frase se tornaria.

No primeiro mês, tudo parecia um sucesso. As postagens fluíam, os e-mails saíam pontuais, e o blog da empresa começou a produzir mais textos do que nunca. Só havia um pequeno detalhe: ninguém lia o que ela produzia, principalmente depois da primeira leva de demissões. Quando começaram a ler, já era tarde demais.

O primeiro sinal veio de um cliente importante, que recebeu um e-mail de agradecimento automático com uma frase que parecia ter sido escrita por alguém em transe espiritual:

Obrigado por nos permitir oferecer sua parceria conosco em nosso sucesso mútuo e sustentável.

Era confuso, circular e, de certa forma, poético.

Mas o ápice veio com a campanha de marketing automatizada. Alguém teve a ideia de personalizar as mensagens com base em "emoções percebidas" nas conversas anteriores com os clientes. O resultado: clientes chamados "Esperança" receberam e-mails melancólicos sobre perdas e superações. Para a coitada da dona Socorro, esposa do Sr. Armando, já dá para imaginar que tipo de mensagem alucinada foi enviada...

O pior não foi o erro técnico, foi a reação. A diretoria não acreditou que fosse culpa da IA. "Deve ser erro de configuração", disseram.

Sim, em certas situações, realmente, eram prompts mal feitos. E em todas as situações, eram prompts que permitiam a IA livre demais. Mas quando a ferramenta começou a responder e-mails de cancelamento com frases como "A desistência é uma forma de aprendizado", o departamento jurídico entrou em pânico.

Foi aí que descobriram que o verdadeiro problema era que ninguém sabia quem tinha configurado o modelo. O antigo analista de dados havia apenas "seguido o tutorial" e mandado o ChatGPT refinar os prompts. E o tutorial, claro, também já havia sido escrito por outra IA.

Na prática, não dá para ficar chateado com uma inteligência artificial, é como ver uma criança falando errado. Os modelos generativos têm uma autoconfiança comovente, afinal, eles não apenas erram, mas erram com elegância. Quando corrigido, eles se justificam dizendo "Entendi seu ponto", mas a única coisa entendida é que, estatisticamente, sempre estiveram certos.

Durante a auditoria, um especialista em engenharia de prompt descobriu que o modelo estava usando como base de conhecimento os dados que ele mesmo produzia, algo extremamente inquietante, já que ele aprendia com o caos que ele próprio gerava. Uma retroalimentação de alucinação automatizada.

E lá estava o retrato perfeito da modernidade digital: uma empresa inteira terceirizando o raciocínio para uma máquina que aprendeu a errar de forma eficiente.

Quando o caso estourou, o CEO fez o que toda liderança moderna faz diante do desastre, publicou um comunicado com toda pompa e circunstância que o LinkedIn permite: "Acreditamos na inovação com propósito. A recente falha reforça nossa convicção de que o humano é insubstituível.".

Internamente, a lição foi amarga. O time de marketing voltou ao modo manual, agora com uma ironia de sobreviventes, e o jurídico proibiu que qualquer conteúdo gerado por IA seja utilizado sem supervisão humana (o que certamente não seria cumprido).

🧠 O que aprendemos com isso

  • Automação sem critério é só preguiça com nome bonito. O ChatGPT não substitui o julgamento, apenas amplifica a ausência dele. "Generativa" não quer dizer "responsável", a IA cria, mas não entende o que cria. É como contratar um papagaio bilíngue e chamá-lo de estrategista.
  • Toda tecnologia reproduz a cultura que a alimenta. Se a empresa é confusa, a IA será poeticamente confusa. Supervisionar e revisar o que é criado por uma IA é a diferença entre inovação e constrangimento público.

👉 Como automatizar sem terceirizar o juízo

Talvez o erro mais grave aqui não tenha sido técnico, mas filosófico: achar que delegar à IA é o mesmo que resolver. Não é. Automatizar decisões sem assumir autoria sobre os critérios é o jeito mais rápido de terceirizar não só o trabalho, mas a responsabilidade, a intenção e a consequência. O sistema não errou porque é falho, ele errou porque ninguém quis assumir a autoria do prompt e entender que engenharia de prompt não é escrever bonito, é documentar intenção, prever ambiguidade, estruturar contexto.

O mais assustador é que grande parte das empresas não estão usando IA com a consciência e responsabilidade merecida, só estão testando em seus negócios porque, por enquanto, está barato, rápido e ninguém quer parecer ultrapassado. Mas IA não é ferramenta de improviso. É uma linguagem operacional que pode moldar como a empresa pensa, fala, decide. Tratar uma ferramenta desse tipo como "brinquedo de marketing" é o que transforma bugs em doutrina e, como toda doutrina, ela continua mesmo depois que os responsáveis saem da empresa.

Isso não significa que IA não possa substituir o humano, só significa que ela deve fazer isso quando o que está em jogo é execução previsível, repetível, auditável e sem ambiguidade interpretativa. Gerar rascunhos, sumarizar dados, responder dúvidas frequentes, construir esboços de interface ou redigir e-mails genéricos são áreas onde a substituição é não só segura como desejável, desde que haja contexto e validação. Sempre que houver julgamento, ambiguidade, impacto reputacional ou consequência jurídica, o humano precisa estar presente para legitimar (não para impedir). IA substitui execução, não intenção.

Enquanto muitos estão tratando a IA como novidade improvisada, na prática ela já faz parte da infraestrutura séria de empresas responsáveis. Ferramentas como LangChain, Semantic Kernel ou até mesmo pipelines de prompt versionado em ambiente de staging já são realidade em operações reais e relevantes. Há times que documentam intenção, simulam desvios, testam alucinação com unit tests e versionam instruções como quem versiona código. Não é ciência oculta, é maturidade operacional.

Seja para um simples chatbot ou para auditar dados complexos, o que diferencia o desastre automatizado da automação confiável não é a tecnologia, é o processo que cerca o uso dela. Se o prompt virou parte do stack, então precisa ser tratado como tal: com controle de versão, rollback, responsabilidade e documentação. Quando a empresa não sabe nem qual foi o último comando que moldou a IA, ela já deixou de ser usuária para virar refém da própria pressa (ou do próprio ChatGPT).

Christopher Kraus

Especialista em internet e fundador da Qualidade.co, atua como UX Designer, Full Stack Developer e Tech Advisor há mais de 20 anos. Apaixonado por publicidade, tecnologia e boas histórias, transforma caos digital em aprendizado e sistemas complexos em experiências simples. Já viu de perto muitos bugs engraçados, golpes digitais e ideias geniais que deram errado, hoje escreve sobre isso com humor e propósito.

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